Uma Breve História de Pesquisa sobre a Mensuração da Força de Relações Simbólicas

Caro/a leitor/a do blog,

Neste mês, temos uma contribuição do Professor Renato Bortoloti. Estamos muito feliz que Renato concordou em nos contar um pouco sobre sua história de pesquisa, uma história que envolve uma jornada muito interessante explorando formas de avaliar a resposta relacional derivada como um modelo de relações simbólicas naturais. Ao fazer isso, o trabalho de Renato se baseou em uma variedade de áreas fascinantes e metodologias diferentes, incluindo o paradigma da equivalência e a eletrofisiologia, para citar apenas algumas. Ao utilizar esses vários elementos, sua pesquisa fez, e continua a fazer, uma contribuição vibrante e convincente ao estudo analítico do comportamento em relação à linguagem e ao pensamento simbólicos. E além do mais, ele é uma pessoa genuinamente agradável e é sempre um prazer interagir com ele. Assim, convidamos o leitor a se acomodar e desfrutar da inspiradora história de pesquisa de Renato — com você, Renato!

Sobre o autor:

Renato Bortoloti é professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, onde está afiliado aos programas de pós-graduação em Psicologia: Cognição e Comportamento, e Neurociências. Suas principais áreas de interesse são os processos psicológicos básicos, psicologia experimental, processos linguísticos básicos e eletrofisiologia da função simbólica. Ele também é membro da Diretoria Científica do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comportamento, Cognição e Ensino (INCT-ECCE), uma rede que reúne pesquisadores de diversas universidades brasileiras e numerosos colaboradores internacionais.

Uma Breve História de Pesquisa sobre a Mensuração da Força de Relações Simbólicas (click here to view this post in English)

Para falar um pouco sobre a minha história de pesquisa, penso que devo retornar ao ano de 1996, quando ingressei no recém-criado curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Já no início daquele ano letivo, a vaga imagem do processo de produção de conhecimento em psicologia que eu distinguia ganhou contornos novos, bem definidos e mais sedutores, sobretudo quando passei a estudar os trabalhos fundadores de diferentes linhas de investigação durante uma disciplina ministrada à época pela professora Deisy de Souza. À medida que eu tomava contato com esses trabalhos fascinantes e com os estudos posteriores que eles inspiraram, crescia-me a impressão de que eu poderia alcançar realização profissional (e muita satisfação pessoal) trabalhando para contribuir com o universo da pesquisa científica. Posso dizer que tive a felicidade de encontrar na UFSCar condições adequadas para testar a veracidade e a consistência dessa impressão inicial.

Durante toda a graduação, o aluno do curso de Psicologia da UFSCar deve se envolver em diversos projetos de pesquisa além das atividades que são tradicionalmente oferecidas em laboratórios didáticos de análise de comportamento. Assim, tive a oportunidade de participar de projetos variados que exploravam, por exemplo, o modelo do labirinto em cruz elevado para testar o efeito ansiolíco ou ansiogênico de substâncias administradas em camundongos, o treinamento de discriminações simples e condicionais em abelhas, leitura e escrita em crianças de risco, entre outros. Além disso, fui beneficiário de uma bolsa de iniciação científica para conduzir experimentos sobre desamparo aprendido em ratos, sob a orientação do professor Julio de Rose. Ainda durante a graduação, como parte das atividades de uma disciplina, tive a oportunidade de replicar um estudo envolvendo aprendizagem por exclusão e formação de classes de estímulos equivalentes. Esse trabalho contribuiu para que eu estudasse com mais atenção o modelo de equivalência de estímulos, o que me despertou para as notáveis possibilidades que um modelo comportamental da função simbólica poderia proporcionar. 

Ingressei no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará (PPGTPC/UFPA) em 2001 e concluí o doutorado pelo mesmo programa de pós-graduação em 2007. Durante todo esse período, meu orientador foi o professor Olavo Galvão. Embora estivessem formalmente vinculados à UFPA, meus trabalhos foram de fato realizados na UFSCar, sob a supervisão do Julio. A escolha do vínculo formal com a UFPA se deu em função de não haver um programa de pós-graduação em psicologia na UFSCar, de os professores Julio e Olavo desenvolverem projetos comuns, da oportunidade de conhecer de perto (e, eventualmente, colaborar com) o fascinante trabalho sobre o potencial simbólico de macacos prego desenvolvido pelo Olavo e, finalmente, de o PPGTPC/UFPA ter aceitado um aluno remotamente instalado. Assim, passei os seis anos da pós-graduação viajando constantemente para Belém, mas estive a maior parte do tempo em São Carlos, trabalhando para validar a equivalência de estímulos como um modelo de significado e investigando propriedades quantitativas de relações simbólicas simuladas experimentalmente, conforme contarei a seguir.

A partir de uma ideia do professor Julio, meu trabalho de mestrado foi desenvolvido para testar a validade do modelo de equivalência como um modelo experimental de relações semânticas utilizando uma medida de significado amplamente aceita: o diferencial semântico. O diferencial semântico é uma técnica utilizada para medir o significado que os participantes atribuem a “conceitos” (palavras, fotografias, desenhos, etc.) que lhes são apresentados. Por meio desse instrumento, é possível quantificar e comparar o significado de um ou de vários conceitos, para um ou vários indivíduos, em uma ou em várias situações. Em linhas gerais, a proposta que norteou o principal estudo que conduzi durante o mestrado pode ser sintetizada assim: se é verdade que relações de equivalência simulam relações simbólicas, então estímulos equivalentes devem compartilhar significados e o diferencial semântico deve captar esse compartilhamento. Esse estudo promoveu uma validação empírica da equivalência como modelo do significado semântico e propôs uma nova metodologia de investigação da transferência de funções que explorei no doutorado.

Além de dar validade à equivalência de estímulos como modelo de significado, a metodologia desenvolvida foi efetiva na determinação de diferenças no nível de transferência de significados em classes de equivalência formadas com a utilização de parâmetros experimentais distintos. Variações na transferência de funções indicam variações no grau de relacionamento de estímulos equivalentes. Os trabalhos conduzidos evidenciam, por exemplo, que o grau de transferência de significados pode variar sistematicamente de acordo com a apresentação atrasada dos estímulos de comparação em tentativas de emparelhamento ao modelo (Bortoloti & de Rose, 2009), com o número de nódulos intervenientes nas relações estabelecidas e com a quantidade de treino (Bortoloti et al., 2013). Essa metodologia foi sensível a essas e a outras manipulações (e.g., Bortoloti & de Rose, 2011). A utilização de apenas procedimentos de emparelhamento ao modelo, como é feito tradicionalmente, não seria suficiente para captar as variações quantitativas encontradas nos estudos mencionados. Procedimentos de emparelhamento ao modelo estabelecem contingências de escolhas forçadas entre alternativas discretas que podem determinar somente se o participante formou ou não formou classes de estímulos equivalentes. Não é possível determinar se os estímulos presentes nas classes formadas estão igualmente relacionados entre si. 

Avaliar a força das relações simbólicas tem sido um dos focos da pesquisa que tenho ajudado a desenvolver há bastante tempo. As estratégias de avaliação incluem medidas psicométricas, como o diferencial semântico; comportamentais, como o implicit relational assessment procedure (IRAP); e eletrofisiológicas, conforme descrito a seguir. Resultados de outros laboratórios já haviam demonstrado que o estabelecimento de relações de equivalência entre estímulos arbitrários pode modular a forma de onda cerebral conhecida como N400, considerada uma assinatura eletrofisiológica de relações semânticas (Barnes-Holmes et al., 2005; Haimson et al., 2008). Nós replicamos esses resultados e argumentamos que a amplitude e a latência do componente N400, muitas vezes tomadas como medidas contínuas da fluência dos participantes em relações simbólicas, podem ser sensíveis a parâmetros experimentais que influenciam o estabelecimento de relações entre os estímulos (Bortoloti et al., 2014). Essa hipótese foi testada e corroborada por Espírito-Santo et al. (2019) e por Dias et al. (2021).

O IRAP, eu comecei a explorá-lo em 2009, quando conduzimos um estudo para avaliar a formação e a força de relações de simbólicas simuladas experimentalmente. Os resultados que obtivemos replicaram alguns que já havíamos alcançado com o diferencial semântico, o que me encorajou a continuar usando o IRAP em diversos estudos nos anos subsequentes. Nesse estudo inicial, dois grupos de participantes eram treinados a estabelecer classes de equivalência entre faces expressando emoções e palavras sem sentido e, em seguida, eles eram submetidos a um IRAP programado para avaliar a força das relações estabelecidas. Esse estudo mostrou que relações de equivalência, quando geradas por meio de um procedimento de matching to sample com atraso, eram capazes de modular um efeito IRAP mais robusto do que relações de equivalência geradas por meio de um procedimento de matching simultâneo. Um manuscrito descrevendo esse estudo foi submetido ao Psychological Record e recebeu feedbacks muito positivos, vindo a ser publicado em 2012 (Bortoloti & de Rose, 2012). Lembro-me de que um dos revisores retirou seu anonimato; era o próprio idealizador do IRAP, Dr. Dermot Barnes-Holmes. Conheci Dermot pessoalmente alguns anos mais tarde e, hoje, tenho o privilégio de colaborar com ele em alguns projetos.

O estudo descrito acima revelou um resultado intrigante e inesperado naquele momento: faces emocionais positivas e negativas pareciam influenciar de forma diferente a força das relações simbólicas simuladas experimentalmente, conforme sugerido pela análise dos efeitos IRAP obtidos. Especificamente, os participantes exibiram um efeito IRAP mais forte em tentativas envolvendo faces alegres e pseudopalavras equivalentes a elas, e um efeito IRAP mais fraco em tentativas envolvendo faces raivosas e pseudopalavras equivalentes a elas. A diferença significativa entre esses efeitos nos sugeriu que as relações entre os membros da classe de equivalência envolvendo faces alegres eram mais fortes do que as relações entre os membros da classe de equivalência envolvendo faces raivosas. Além disso, uma reanálise de dados obtidos com o diferencial semântico em estudos que também envolviam a formação de classes de equivalência entre faces humanas expressando emoções e estímulos arbitrários corroborou essa hipótese: ela revelou uma transferência de funções de maior magnitude em classes de estímulos que envolviam faces alegres, quando comparadas a classes que envolviam faces negativas. Percebemos que estávamos diante de algo novo, ainda não descrito na literatura da análise do comportamento, embora a psicologia mainstrem apontasse para um (controvertido) efeito de superioridade de faces alegres (happiness superiority effect) em alguns contextos, especialmente em situações experimentais envolvendo o paradigma face in the crowd. 

Imagem de Gino Crescoli por Pixabay

Decidimos, claro, replicar sistematicamente esses achados, tanto com o diferencial semântico (e.g., Bortoloti et al., 2013) quanto com o IRAP (Bortoloti et al., 2019; 2020; Schmidt et al., 2021), e o “happiness superiority effect” em relações simbólicas simuladas experimentalmente se revelou robusto. Um esforço interpretativo atual desses resultados tem se beneficiado dos modelos interpretativos recentes, contidos na versão atualizada da RFT proposta pelos Drs. Dermot Barnes-Holmes, Colin Harte e colaboradores (e.g., Barnes-Holmes & Harte, 2022), em que as propriedades funcionais dos estímulos devem ser consideradas na análise do estabelecimento de relações simbólicas entre eles. Temos conduzido alguns trabalhos que confirmam pressupostos apresentados nesses modelos interpretativos (e.g., Pinto et al., 2020; Bortoloti et al., 2023), mas uma descrição mais compreensiva desses trabalhos foge um pouco ao escopo deste relato.

Para finalizar, gostaria de dizer que as atividades de pesquisa que relatei acima integram o núcleo de pesquisa básica do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comportamento, Cognição e Ensino (INCT-ECCE), uma rede que reúne pesquisadores de oito diferentes universidades brasileiras e vários colaboradores internacionais. Coordenado pela Dra. Deisy de Souza, o INCT-ECCE se concentra na ciência e tecnologia do comportamento, abordando o funcionamento simbólico e os déficits nos repertórios simbólicos. Essa rede integra pesquisa básica, translacional e aplicada em um programa multidimensional. O núcleo de pesquisa básica do INCT-ECCE se dedica ao desenvolvimento de novos conhecimentos e novas metodologias relevantes para a compreensão da função simbólica. Medir a força de relações simbólicas em diferentes condições experimentais tem sido um dos focos de minha pesquisa e pode, eventualmente, beneficiar os núcleos translacional e aplicado no desenvolvimento de procedimentos de ensino de repertórios simbólicos mais efetivos. Tive o privilégio de acompanhar a idealização, o desenvolvimento e a consolidação do INCT-ECCE quando eu ainda estava na UFSCar, e sou muito grato aos Drs. Deisy de Souza e Julio de Rose, que lideraram essa iniciativa.

Referências

Barnes‐Holmes, D., & Harte, C. (2022). Relational frame theory 20 years on: The Odysseus voyage and beyond. Journal of the Experimental Analysis of Behavior. https://doi.org/10.1002/jeab.733

Barnes-Holmes, D., Staunton, C., Whelan, R., Barnes-Holmes, Y., Commins, S., Walsh, D., Stewart, I., Smeets, P. M., & Dymond, S. (2005). Derived stimulus relations, semantic priming, and event-related potentials: testing a behavioral theory of semantic networks. Journal of the Experimental Analysis of Behavior84, 417-433. doi: 10.1901/jeab.2005.78-04

Bortoloti, R., de Almeida, R. V., de Almeida, J. H., & de Rose, J. C. (2019). Emotional faces in simbolic relations: a hapiness superiority effect involving the equivalence paradigm. Frontiers in Psychology, 10, 1 – 12. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2019.00954

Bortoloti, R., de Almeida, R. V. de, Almeida, J. H., & de Rose, J. C. (2020). A commentary on the dynamics of arbitrarily applicable relational responding involving positive valenced stimuli and its implications for the IRAP research. The Psychological Record. https://doi.org/10.1007/s40732-020-00413-2

Bortoloti, R., & de Rose, J. C. (2009). Assessment of the relatedness of equivalent stimuli through a semantic differential. The Psychological Record, 59, 563-590.

Bortoloti, R., & de Rose, J. C. (2011). An “Orwellian” account of stimulus equivalence. Are some stimuli “more equivalent” than others? European Journal of Behavior Analysis, 12, 121-134.

Bortoloti, R., & de Rose, J. C. (2012). Equivalent stimuli are more strongly related after training with delayed matching than after simultaneous matching: a study using the implicit relational assessment procedure (IRAP). The Psychological Record, 62, 41-54. https://doi.org/10.1007/BF03395785

Bortoloti, R., Pimentel, N., & de Rose, J. C. (2014). Electrophysiological investigation of the functional overlap between semantic and equivalence relations. Psychology & Neuroscience, 7, 183 – 191.

Bortoloti, R., Rodrigues, N. C., Cortez, M., Pimentel, N., & de Rose, J. C. (2013)Overtraining increases the relational strength of equivalent stimuli. Psychology and Neuroscience, 6 (3), 357 – 364.

Bortoloti, R., Schmidt, M., Harte, C., & Barnes-Holmes (2023). Feel the Func: Interpreting IRAP Performances Based on Cfunc versus Crel Stimulus Properties. The Psycological Record, 73, 363–373. https://doi.org/10.1007/s40732-023-00557-x

Dias, G. C. B., Silveira, M. V., Bortoloti, R., & Huziwara, E. M. (2021), Electrophysiological analysis of stimulus variables in equivalence relations. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 115, 296-308. https://doi.org/10.1002/jeab.664

Espírito-Santo, R. R. B., Dias, G. C. B., Bortoloti, R. & Huziwara, E. M. (2020). Effect of the number of training trials on the event-related potential correlates of equivalence relations. Learning & Behavior48, 221-233. https://doi.org/10.3758/s13420-019-00389-2

Haimson, B., Wilkinson, K.M., Rosenquist, C., Ouimet, C. & McIlvane, W.J. (2009). Electrophysiological correlates of stimulus equivalence processes. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 92, 245-256. doi: 10.1901/jeab.2009.92-245

Pinto, J. A. R., de Almeida, R. V., & Bortoloti, R. (2020). The stimulus’ orienting function may play an important role in IRAP performance: Supportive evidence from an eye-tracking study of brands. The Psychological Record. doi: 10.1007/s40732-020-00378-2

Schmidt, M., de Rose, J. C, & Bortoloti, R. (2021). Relating, orienting and evoking functions in an IRAP study involving emotional pictographs (emojis) used in electronic messages. Journal of Contextual Behavioral Science, 21, 80-87. doi: 10.1016/j.jcbs.2021.06.005

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